Individualidade x Coletividade: reflexões sociológicas sobre o passaporte da vacina (covid-19)
A supremacia dos interesses coletivos sobre as liberdades individuais, via de regra, é característica marcante em governos autoritários.
POLÍTICA
Por Thaiane Firmino
Escrito em 6 de agosto de 2021
Atualizado em 7 de abril de 2022
Publicado em 7 de setembro de 2023
O passaporte da vacina (covid-19) tem provocado divergências em todo o mundo. Para alguns, o mecanismo é fundamental para incentivar a vacinação em massa e coibir o aumento no número de casos da covid-19 - doença provocada pelo vírus sars-cov-2 e suas variantes. Já para outros, a obrigatoriedade do certificado se configura como atentado às liberdades individuais, uma vez que o documento tende a ser exigido para entrada de turistas estrangeiros ou mesmo para acesso dos nativos a locais com atividades indoor e outdoor. Longe de engessar entendimento sobre o tema, este ensaio se propõe a colocar luz sobre argumentos e ideias que permeiam a temática e, para isso, levará em conta os panoramas mundial e nacional.
Inicialmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) não era a favor do passaporte sanitário como ferramenta para garantir a entrada ou a saída de pessoas dos países, em decorrência da incerteza sobre a eficácia das vacinas e por conta da desigualdade no acesso aos imunizantes por parte das nações. Em declaração emitida em março de 2021, o diretor de emergências da entidade, Michael Ryan, afirmou: "Temos que ser cuidadosos, porque agora estamos lidando com uma situação de iniquidade tremenda no mundo, em que a probabilidade de você receber uma vacina tem muito a ver com o país onde vive, a riqueza e a influência que você ou seu governo têm em mercados globais" (RYAN apud G1, 2021, n.p).
Preliminarmente, portanto, a OMS considerou que a não disponibilização de vacinas de forma igualitária poderia erguer barreiras, inclusive de acesso a emprego e serviços, além de provocar situações de discriminação contra pessoas que não podem receber o imunizante por uma razão ou outra. No entanto, a partir de julho do mesmo ano a instituição - que está desenvolvendo um certificado digital de vacinação com registro global - emitiu nota solicitando que os países aceitem viajantes que receberam a imunização completa com alguma das seis vacinas aprovadas pela organização: Pfizer / BioNTech; Oxford / AstraZeneca - lotes da Índia e Europa; Janssen / Johnson & Johnson; Moderna; Sinopharm; Sinovac / CoronaVac.
Cenário internacional
Países como Israel, Áustria, Dinamarca, Eslovénia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Holanda, Portugal, Japão e Coréia do Sul implementaram o passaporte sanitário. Alguns deles, como Israel, suspenderam a obrigatoriedade da certificação cerca de um ano depois. Em outros, como a Dinamarca, o documento é exigido, inclusive, para frequência em academias de ginástica e salões de beleza, sendo que até 31 de agosto de 2021 a apresentação era compulsória também por parte de estudantes, funcionários e visitantes de centros de ensino superior.
Para os italianos, a norma entrou em vigor de forma mais severa em 6 de agosto de 2021. Por meio da regra, a verificação do certificado - que era exigida apenas para viagens internacionais ou acesso a grandes eventos - foi estendida para atividades desenvolvidas dentro do país, de forma que pessoas que receberam uma dose passaram a ter o direito de acessar locais fechados e aquelas que receberam duas doses a frequentar ambientes lotados. Contra a determinação, houve manifestações em Roma doze dias antes da medida vigorar e, na ocasião, parte dos participantes associou a ideia à suástica nazista, uma vez que optando pela não vacinação o cidadão passaria a ser considerado como de segunda classe - como os judeus, que por ocasião do nazismo foram obrigados a sinalizar na roupa a própria etnia.
Na França, que aprovou a indispensabilidade do passaporte no início do mês de agosto de 2021, mais de 160 mil pessoas foram às ruas protestar contra a medida. Por lá, a lei determinou que a obrigatoriedade da certificação sanitária teria duração de dois meses - período que compreendia o estado de emergência decretado pelo governo. No país, a regulamentação entrou em vigência em 15 de setembro de 2021 e era compulsória para sítios públicos onde se verificasse a presença de mais de 50 pessoas.
O governo dos Estados Unidos (EUA) aponta que a imposição se mostra como procedimento ineficaz e invasivo, já que não tem o poder de evidenciar que os recuperados da covid-19 possuem anticorpos que os protejam de uma reinfecção. Por isso, em meados do mês de abril de 2021, através de entrevista concedida pela secretária de imprensa da Casa Branca, Jen Psaki, o país descartou a obrigatoriedade de passaporte de vacinação e facultou às empresas privadas a exploração da ideia. “Nosso interesse [...] é muito simples, é de que a privacidade e os direitos dos americanos devem ser protegidos e, portanto, que esses sistemas não sejam usados de forma injusta contra a população” (PSAKI apud ISTOÉ, 2021, n.p).
O primeiro-ministro da Bélgica, Alexander De Croo, considerou importante que até o mês de setembro de 2021 a certificação fosse exigida para grandes eventos realizados no país. No entanto, ponderou que é desnecessária a imposição de um certificado sanitário para que a população tenha acesso a estabelecimentos públicos. Segundo ele, a situação é complexa, contudo, certas prerrogativas devem prevalecer no que diz respeito ao trato com a sociedade civil. “A solução nunca pode ser organizar a nossa vida com passes”, destacou (DE CROO apud REVISTA OESTE, 2021, n.p).
Cenário nacional
No Brasil, os cidadãos que já concluíram o processo de vacinação podem pedir o Certificado Internacional de Vacinação (CIVP) pelo site ou pelo aplicativo ConecteSUS. Não obstante, no próprio endereço eletrônico é possível conferir a informação de que, no momento, não há determinação da OMS e do Ministério da Saúde (MS) para emissão do documento. No início de junho de 2021, a proposta de criação do chamado Passaporte Nacional de Imunização e Segurança Sanitária (PSS) foi aprovada pelo Senado e seguiu para apreciação na Câmara dos Deputados. O texto aponta a obrigatoriedade do passaporte para acesso a instituições e eventos públicos, comércios, hotéis, parques e meios de transporte coletivos. Ademais, também prevê a restrição ou suspensão da circulação de pessoas em locais públicos e privados.
Nesses termos, os favoráveis à implantação da certificação compulsória defendem que o mecanismo é uma forma de coação indireta que força a vacinação, já que em caso de recusa o indivíduo perde o direito de frequentar determinados ambientes. Outro argumento utilizado é que episódio semelhante já ocorreu no país, por ocasião da promulgação da obrigatoriedade da vacinação contra a varíola, em 1904. Também constam entre as justificativas o Programa Nacional de Imunizações e o Estatuto da Criança e do Adolescente, dispositivos que contam com calendários de imunização estabelecidos pelo MS que definem certas vacinas como obrigatórias.
Os apoiadores do passaporte sanitário destacam ainda que atestados de vacinação já são exigidos no Brasil em situações relativas ao recebimento de benefícios sociais, pagamento de salário-família, contratação trabalhista, matrícula escolar e alistamento militar. Além disso, pontuam que a exigência de CIVP contra a febre amarela é exigida para entrada em alguns países. Discorrem também sobre o fato de que em 1897 o governo da Índia - controlada pelo Reino Unido à época - aplicou a utilização do passaporte sanitário para tentar controlar o surto de peste bubônica. Em meio ao debate público, o Supremo Tribunal Federal (STF) sinalizou que os preceitos gerais sobre imunização postos em prática no país se aplicam ao contexto pandêmico, reforçando que a imunização se mostra como uma política pública com caráter de encargo.
Todavia, a possível implantação do passaporte é criticada por juristas, especialistas, políticos e parte da sociedade civil, que enxergam o mecanismo como ofensa à liberdade dos cidadãos. Os que se opõem a normativa destacam que as vacinas contra a covid-19 foram desenvolvidas em caráter experimental e aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de forma emergencial e, por isso, não podem ser equiparadas aos imunizantes obrigatórios no Brasil que, via de regra, já se configuram como eficazes e seguros - principalmente porque têm clarificados pontos como contraindicações e efeitos colaterais, por exemplo. Diferentemente destes últimos, os desenvolvidos para combater a atual pandemia não dispuseram de tempo suficiente para cumprimento de etapas que apreciam efeitos adversos de médio e longo prazo (GAZETA DO POVO, 2022).
Outro elemento que emerge no contexto é o fator discriminação social, uma vez que o ato imperioso de requerer a apresentação de um documento pode ocasionar um abismo entre os que o possuem e os que não o detém. A restrição de acesso a locais apenas para pessoas com esquema vacinal completo pode ser entendida como ofensa aos direitos humanos. Não obstante, é salutar considerar ainda que após a exigência do passaporte sanitário a restrição ou suspensão da circulação de pessoas em locais públicos e privados passará a ser vista como uma espécie de punição para os não vacinados - o que ferirá, mormente, aqueles que não podem ser vacinados em razão de contraindicação médica, por exemplo.
Intervenção imediata
Nesse escopo, o debate nacional é permeado ainda pelo chamado “tratamento precoce”. O mecanismo consiste em iniciar os cuidados terapêuticos com medidas para minimizar a replicação viral a partir da combinação de drogas. Dito de outro modo, é um aparato que tem como objetivo prevenir a contaminação por sars-cov-2 e suas variantes, a partir da prescrição de medicamentos conhecidos e de baixo custo. A ideia é que por meio da intervenção imediata haja redução no número de pacientes que progridem para fases mais graves da doença, bem como no índice de internações e complicações pós-infecção, o que provocaria uma atenuação do quadro de óbitos.
Os defensores dessa linha, porém, têm recebido críticas em todo o mundo, sobretudo por parte dos conglomerados de comunicação e representantes das indústrias farmacêuticas. No Brasil, cientistas, pesquisadores, médicos e cidadãos que defendem o recurso, não raras vezes, são enquadrados na designação “negacionista” e identificados como avessos à ciência. Além disso, comumente são acusados pelas “agências de checagem de fatos” de propagarem “fake news”. Ocorre que elas, apesar de se definirem como organismos que visam contribuir com o público no sentido de diminuir a propagação de notícias falsas, na prática se debruçam “sobre pautas subjetivas ou temas sem consenso, como os debates religiosos, ideológicos e até referentes a avanços da ciência” (SCHENKEL apud GAZETA DO POVO, 2021, n.p).
Nesse ponto, é imprescindível mencionar que no Brasil as principais agências de checagem - Aos Fatos e Lupa - estão associadas ao Facebook e são abastecidas com verba do programa de apoio ao jornalismo da Big Tech. Em março de 2021, inclusive, a Lupa anunciou ter sido o único site brasileiro selecionado pela Google para receber parte dos US$ 3 milhões do fundo criado pela companhia em defesa da vacina contra a covid-19.
Em resposta à vigorosa investida contra os que se opõem ao passaporte sanitário, surgiu o movimento Médicos Pela Vida (MVP), grupo que reúne profissionais adeptos ao tratamento precoce contra a covid-19. De acordo com informações contidas no sítio eletrônico da entidade, a atuação dos médicos é pautada “em estudos científicos atualizados, na informação clara ao paciente e no seu consentimento livre e informado para uso off-label de medicamentos” com os quais os profissionais têm experiência (MANIFESTO III, 2021, n.p.). Segundo a médica e membro do MVP, Lucy Kerr, estudo desenvolvido em agosto de 2020 pela Zagazig University, no Egito, analisou um paciente contaminado e todos os que tiveram contato com ele. De acordo com ela, os resultados apontaram que entre os preventivamente protegidos com o medicamento ivermectina - utilizado tradicionalmente no tratamento de infestações por parasitas - 92% não se infectaram com o vírus sars-cov-2 e os 7% que testaram positivo para a contaminação desenvolveram sintomas leves nos três primeiros dias, não havendo registro de morte. Por outro lado, a profissional destaca que o grupo controle que não recebeu o medicamento apresentou 58% de infectados. Para a pesquisadora, “o grande motivo pelo qual não se aceita [a ivermectina] é que é uma droga muito barata, com patente quebrada, ninguém vai ter lucros astronômicos em cima disso”, alertou (KERR apud JOVEM PAN, 2020, n.p.).
Países do continente africano que já faziam uso desse tipo de medicamento para combater outras doenças registraram baixa estatística de casos de óbitos provocados por complicações decorrentes da covid-19. Por conta disso, estudo desenvolvido pelo Drugs for Neglected Diseases initiative (DNDi) busca verificar se o fenômeno tem relação com os fármacos e intenta identificar terapêuticas que possam ser utilizadas para tratar, precocemente, casos leves e moderados da doença. O intuito, segundo a organização que não tem fins lucrativos, é limitar a capacidade de transmissão do vírus e impedir que a contaminação progrida para doenças graves, o que evitará a sobrecarga nos sistemas de saúde na África.
Individualidade x Coletividade
Feito esse levantamento acerca das nuances que permeiam as discussões relacionadas ao passaporte sanitário, principalmente no Brasil, cabe trazer à tona postulações de Silva (2018), ancoradas nas ideias de Foucault, sobretudo no que concerne à tecnologia de poder. No contexto abordado, esta pode ser verificada não como desvio, mas como manifestação limite não estranhada pela sociedade normalizadora que, imperceptivelmente (ou não), viabiliza a instauração de prerrogativas de “poder soberano” ao Estado (ou mesmo às instituições globais), mediante a oferta de autorização para que o ente decida e aponte determinações sobre pontos que são intrínsecos às individualidades.
Há ainda a possibilidade de recorrer a Dreyfus, Rabinow e Foucault (2010) e trazer para a discussão as duas formas de lutas por eles elencadas. A primeira, que se manifesta contra as formas de dominação (social), pode ser percebida no contexto em discussão nas ponderações dos contrários ao passaporte sanitário, os quais alegam que a implantação da certificação criará um abismo entre os vacinados e os não vacinados. A segunda, que é exposta contra aquilo que liga o indivíduo a si mesmo e o submete aos outros (submissão), pode ser verificada no mesmo grupo, sobretudo a partir de posicionamentos relacionados à defesa de estratégias relativas ao tratamento precoce. É certo, porém, que a primeira se sobrepõe, nesse caso.
Para os autores, a razão pela qual esse tipo de luta tende a prevalecer deve-se à criação e desenvolvimento do Estado. Segundo eles, contudo, apesar do poder estatal ser considerado como um ente que privilegia os interesses da totalidade, há em sua formação uma astuciosa combinação de técnicas de individualização e procedimentos de totalização para que o equilíbrio seja mantido. Os estudiosos, no entanto, destacam que há imbricação entre poder, comunicação e capacidades objetivas e, não por acaso, esse ponto também se adequa ao assunto aqui tratado. Isso porque, para além dos discursos oficiais e das campanhas de incentivo à vacinação, a possibilidade do passaporte sanitário se configurar como medida compulsória é ponto que corrobora com a ideia de entrelaçamento entre os três eixos mencionados - o que, fatalmente, culmina na disciplinarização da sociedade.
Quando observado o cenário mundial, é perceptível que a certificação se apresenta como um processo abrangente de biopolítica da população, já que afeta os seres humanos como massa global (DREYFUS; RABINOW; FOUCAULT, 2010). No entanto, é relevante a ponderação dos autores no que diz respeito ao fato de que o poder não é da ordem do consentimento, mas um modo de ação de alguns sobre outros que só é possível mediante a existência de sujeitos livres. E aqui está o cerne da questão. A liberdade, de acordo com eles, é um elemento fundante e que se firma como limite, uma vez que pode se opor àquilo que a fere. Apesar disso, é válido destacar que, conforme Collier (2011), o poder regulatório voltado para fenômenos de população precisa ser percebido como sendo uma coexistência independente entre poder e disciplina.
Nesses termos, é importante mencionar alguns critérios estabelecidos pelos autores e correlacioná-los com a temática abordada. O primeiro deles é o sistema das diferenciações, que pode ser observado por meio da possível segregação originada por ocasião da implantação do passaporte sanitário. Além dos quesitos já mencionados anteriormente, é válido pontuar outros: 1) do ponto de vista da bioética, uma pessoa passaria a ter mais direito do que outra pelo fato de possuir uma certificação; 2) a compartimentalização dos direitos a partir da segmentação comportamental também é outro risco - no Reino Unido, por exemplo, já existem defensores de que os veganos éticos podem ficar isentos de vacinação obrigatória em decorrência dos imunizantes terem sido testados em animais; 3) apesar da possibilidade de impressão do documento, os modelos de passaportes de imunização desenvolvidos giram em torno de aplicativos de smartphone e o acesso a esse tipo de aparelho ainda não é uniforme - segundo o coordenador científico do HIMSS Hospitalar Fórum e da 1ª Digital Journey by Hospitalar e principal mentor do eHealth Mentor Institute (EMI), Guilherme Hummel, nos Estados Unidos uma em cada cinco pessoas não possui esse tipo de aparelho; 4) a desigualdade na distribuição das vacinas pode acarretar em fechamento das fronteiras internacionais, o que prejudicaria os países periféricos.
O segundo critério proveniente dos estudos de Dreyfus, Rabinow e Foucault (2010) que apresenta relevância no escopo aqui engendrado é o das modalidades instrumentais, uma vez que as nuances que permeiam a implantação do passaporte possuem potencial para instaurar um ambiente hostil, tanto no trato do Estado com o cidadão como nas relações entre os próprios citadinos. Entre os fatores que exemplificam esse quesito estão: 1) as divergências quanto ao entendimento de que a vacina é a única solução contra a pandemia e que não há possibilidade de desenvolvimento de estratégias científicas relacionadas ao tratamento precoce; 2) o impedimento do acesso de não vacinados à vida social e assistencial; 3) a instauração da vigilância social entre vacinados e não vacinados; 4) a implementação de medidas que se opõem à ética médica, sobretudo acerca dos princípios da autonomia, compaixão, confidencialidade e inclusão.
O terceiro critério formulado pelos autores que se enquadra nessa discussão são as formas de institucionalização. Isso porque parte das prerrogativas inerentes à obrigatoriedade do passaporte potencializam os poderes oficiais. No arcabouço que confirma essa percepção estão: 1) o risco iminente de que o zelo no trato dos dados pessoais dos cidadãos seja negligenciado em nome dos interesses coletivos, já que o Estado tenderá a percorrer a linha tênue entre a transparência e a privacidade no que tange a divulgação de informações; 2) o registro global de vacinação da OMS e o trato quanto à privacidade e segurança dos dados pessoais e daqueles que decorrem destes; 3) as condições de segurança e privacidade dos dados vacinais em países com baixa estrutura tecnológica.
Conforme Dreyfus, Rabinow e Foucault (2010, p. 248), “não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual; toda relação de poder implica, então, pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta”. Não por acaso, portanto, na maioria dos países têm ocorrido manifestações - em pequena, média ou grande escala - contra a implantação compulsória do passaporte sanitário. Em contrapartida, ao contrário do que defendem os autores, o processo está envolto pela sobreposição de um dos lados, já que estão sendo mais bem aceitos aqueles que corroboram com a certificação obrigatória.
Nesse sentido, é salutar abordar o que registram Sell e Martins (2017) quando estudam a estrutura da ação social sob a égide das concepções parsonianas. Segundo os autores, associando ideias de Durkheim e Hobbes, no primeiro momento (teoria voluntarista da ação) Parsons tratou sobre a importância dos valores e das normas para a manutenção da ordem social sem desconsiderar, no entanto, a variedade de condições materiais e objetivas que permeiam a ação. A partir disso, emergiu o entendimento de que é necessário “analisar a ação social de uma maneira multifuncional como um sistema conceitual composto” (SELL; MARTINS, 2017, p. 244).
Mais tarde, porém, os pesquisadores identificaram que Parsons subverteu a lógica inicial e passou a considerar com mais ênfase a interação, ou seja, “a ação [...] a partir dos papéis que os atores desempenham na sociedade e que os permitem coordenar suas ações” (SELL; MARTINS, 2017, p. 245). Por esse ângulo, tanto favoráveis quanto contrários ao passaporte sanitário se enquadram no estrutural-funcionalismo parsoniano, já que a ideia central do postulado consiste na percepção de que as escolhas dos atores são reguladas por valores comuns por eles internalizados durante a socialização. Todavia, é evidente que há uma ruptura com o que, segundo Munch (1999), a lógica parsoniana identificou como solidariedade, por ocasião da organização dos sistemas que compõem a clássica teoria. Desse modo, quando as lentes são postas sobre o esmiuçamento dos sistemas e subsistemas cunhados por Parsons, para fins deste ensaio se enquadram como fundamentais o sistema social e o subsistema político.
Posto isto, e partindo da premissa de que os indivíduos e suas ações são entendidos no debate em voga como processos pertencentes e atuantes no sistema, é vultoso registrar que no âmbito amplo, ou seja, no social, a temática “passaporte da vacina (covid-19)” é discutida livremente. No entanto, é inegável que tanto entre os favoráveis à implantação da certificação como entre os contrários estão presentes alguns dos fatores que Munch (1999) compreende como características que definem as dimensões do espaço de ação: articulação de interesses, fins estabelecidos por indivíduos e grupos, disposições pessoais, discurso social/cultural e, por que não mencionar, comunidades particularizadas - que, no caso, está representada por uma minoria que, historicamente, é contrária ao processo de vacinação sob qualquer especificidade.
Acontece que quando o subsistema político é elevado a nível de análise, consoante registra Munch (1999), é visível que a autoridade exerce múltiplas influências e a ação tende a ser controlada pelo poder regulador, uma vez que esse subsistema “desempenha as funções de tomada coletiva de decisões e é a concretização de consecução de fins e a especificação do raio de ação” (MUNCH, 1999, p. 187). No entanto, o processo é permeado também pelas estruturas mediadoras, que em relação ao centro das discussões aqui apresentadas podem ser observadas na produção de integração imposta compulsoriamente pela autoridade e na combinação de intercâmbio, autoridade, associação comunitária e discurso. Não obstante, não há como negar que quanto mais a ação é controlada pela autoridade, mais a ordem institucional se impõe frente a outras alternativas (MUNCH, 1999).
O autor pondera ainda que a observância de esquemas regulares na ação institucional e o poder social coercitivo das normas estão em íntima relação com as raízes do mundo vivencial de uma sociedade. Nesse ponto, quando verificado o debate acerca do passaporte sanitário, fatalmente, há sobrepulgência das instituições que dão vistas à esquemas de ordem coletiva e, portanto, delineiam objetivos a partir da autoridade que possuem. Por esse motivo, há que se considerar a lógica parsoniana de que a centralidade da questão está no fato de que o grupo que dispõe do poder toma decisões subjetivas, com vista a obtenção de um fim, no seio de uma situação de ação, a qual é determinada por ideias (ideologia), valores (ou ausência deles) e normas, além de condições materiais.
Diante disso, os debates científico e político se apresentam como contributivos para avanços sociais e recuo de mecanismos de cerceamento da liberdade. Afinal, em um país equilibrado é normal que ocorram tensões, sobretudo em um contexto pandêmico que exacerbou as limitações do ser humano e, consequentemente, da ciência. Ainda assim, precisa ser preponderante o entendimento de que não é razoável apostar todas as fichas, exclusivamente, em um único mecanismo - e é até imprudente torná-lo compulsório, dadas as limitações decorrentes de seu rápido processo de desenvolvimento. À vista disso, é importante ter em mente que a supremacia dos interesses coletivos sobre as liberdade individuais, via de regra, é característica marcante em governos autoritários. O despotismo, aliás, emerge justamente envolto por discursos ancorados no bem geral dos cidadãos, quando, na verdade, está alicerçado no controle vertical. Nunca é demais levar em conta que apenas os tiranos não se importam com as liberdades individuais.
Para referenciar este artigo use: SILVA, Thaiane Firmino da. Individualidade x Coletividade: reflexões sociológicas sobre o passaporte da vacina (covid-19). Repórter Nacional, 2023. Disponível em: <https://www.reporternacional.com/2023/03/individualidade-x-coletividade.html>. Acesso em: dia, mês e ano.
REFERÊNCIAS
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Thaiane Firmino é filha e serva do Deus de Abraão, Isaque e Israel; jornalista; cientista social e gestora desportiva e de lazer. Possui Mestrado em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Especialização em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e o Mundo do Trabalho pela Universidade Federal do Piauí (UFPI); Especialização em Linguagens, Suas Tecnologias e o Mundo do Trabalho pela Universidade Federal do Piauí (UFPI); Especialização em Ciências da Natureza, Suas Tecnologias e o Mundo do Trabalho pela Universidade Federal do Piauí (UFPI); Especialização em Matemática, Suas Tecnologias e o Mundo do Trabalho pela Universidade Federal do Piauí (UFPI); Bacharelado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB); Bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Tecnologia em Gestão Desportiva e de Lazer pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE); Curso Técnico em Meio Ambiente pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI); Aperfeiçoamento em Educação e Tecnologia pelo Ministério da Educação do Brasil (MEC); Aperfeiçoamento em Bem-estar no Contexto Escolar pelo Ministério da Educação do Brasil (MEC).
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